sábado, 10 de janeiro de 2015

1999

. . . ouvindo "Lust for Life", Iggy Pop

http://grooveshark.com/#!/s/Lust+For+Life/4yA0tv?src=5

Os anos noventa foram decididamente os anos de transição do tudo feito a papel ou a máquina de escrever para o tudo feito a máquina de processamento.

Até hoje chamo PCs, Notes e Tablets de máquinas.

E meus dedos enormes não teclam com eficiência aquele tecladinho da tela do celular emprestado da "amiga" que nem quer mais ele de volta e já nem é mais amiga também.

Escolhas ruins, aparelhos obsoletos, amigos obsoletos, malditos dedos cheios de pressão que demoram tanto pra responder uma pergunta pelo tal do whatsapp que a pessoa no outro aparelho já mudou de assunto duas vezes e eu ainda estou falando do primeiro!

Hilário!

Mas são as coisas da velhice. Tudo se vai e fico satisfeita em saber que fiquei para trás em muita coisa e não tenho a mínima vontade de correr em alcançar quase nada nem quase ninguém.

O primeiro desses momentos de satisfação foi em 1999.

É! A beira do final do milênio!

"O mundo vai acabar!", o assunto etéreo mais uma vez ganhava os papos em toda a parte.

" . . . é só mais uma ano! Cada dia na vida é uma gota no oceano!" cantava o Dinho Ouro Preto com o Capital Inicial.

Estavamos a 4 anos na USP. Tinha a minha turma fechada! Mesmos bares, mesmos drinks, mesmas músicas, mesmas disciplinas na faculdade, mesmos estágios, mesmas viagens, mesmas histórias. Uma fidelidade de irmãos. Nos encontrávamos até sem combinar. Nos amávamos sem nos dizer nada! Um olhar bastava! Aguentávamos nossos surtos em algumas ocasiões . . . Em outras não! De jeito nenhum! Divertido! Muito divertido!

E tenho certeza que mesmo tendo passados esses 20 anos desde nossa estréia na rodoviária (apelido que demos ao nosso prédio A Geografia da Universidade de São Paulo), quando nos reencontrarmos todos não terá passado um só segundo sequer!

Mas por que 1999? Houve tanta coisa antes? Mais ainda depois? É que 1999 eu aprendi a fazer Caderneta de Campo!

Éééééééééééé tava contando quantas eu já tenho e quando passou da trigésima abri um sorriso enorme! Já não cabem mais na caixa que separei para elas! sksksksksksks

É de dar orgulho.

As anteriores a 1999 ainda eram mal escolhidas, capa mole, preenchidas a caneta!

" . . . madness! Madness and stupidity!"

Fico olhando para os borrões hoje, ouvindo Iggy Pop e pensando no filme Transpoting!

Eu era uma idiota perdida!

Só podia ter perdido centenas de páginas de informação preciosíssima em uma típica chuva de janeiro por pura burrice!

Só depois de 1999 passei a usar exemplares com capas duras, escrever somente à lápis e levá-las com seu plástico protetor sempre do ladinho.

Lápis apontados com borracha na outra ponta? Vários na bolsa!

"Caderneta de Urbes", chamo quando estou por aqui!

Tinha muito o que registrar na Urbes 6 daquele ano!

Foi o ano em que me apaixonei por mais uma escolha ruim.

O algoz, carrasco da minha mente, corpo e coração. Ele já circulava dois anos antes em volta de mim, ansioso por se aproximar. Éramos novos na empresa onde trabalhávamos, coaches, tínhamos turmas enormes e o training dele era logo em seguida do meu.

Os trainees faziam coraçõezinhos na lousa com nossos nomes. Diziam que éramos muito parecidos e que fariamos um ótimo casal.

Quem dá bola para o que trainee acha?

Só uma idiota! Do tipo que compra caderneta de capa mole e preenche a caneta em janeiro!

Eu! Claro!

E ele! Hah ele caiu matando!

Papinho de carente, recém saído de relacionamento sério, mais velho, inteligente, excelente coalch! As trainees suspiravam e os trainees quando nos víam juntos gritavam em coro: "vai que é tuuuuua Tafarel!".

E ríamos todos!

A caderneta já tinha a capa mole e as folhas finas!

Só faltava eu tacar a caneta!

Levei semanas para aceitar o primeiro convite para sair.

Cinema . . .  Transpoting!

Baita filme! Alucinamos com a trilha sonora!

Beijo? Só na porta de casa na hora de descer do carro.

Eu tinha passado anos sem me envolver com ninguém! Quase 3 pra ser sincera! Estava me preparando para a escolha que já estava decidida a fazer! Auto-iniciar-me como wiccana. Segmento de bruxaria que começava a estourar no underground do exoterismo e do ocultismo.

Mais uma vez: caderneta errada! caderneta errada! caderneta errada!

Escolha ruim! Tudo vai se arrasar com a primeira chuva de janeiro!

E assim foi! Taquei a caneta e registrei adoidado!

Ele era interessante, estávamos na mesma época de faculdade - o maldito meio - estávamos apaixonados por nosso trabalho e odiávamos a empresa que nos empregava, mas amávamos nossos alunos, que vibravam com nossa relutância em assumir que "tava rolando um fight", como falavam na época!

Imagine admitir alguma coisa para trainees?! Tinhamos tudo acertadinho! Nada de exposições, nada de assumir coisa alguma.

Apenas saíamos e ficávamos.

E rolaram uns meses até a carne falar alto e aí a paixão caiu sobre nós. Forte e pesada como só a dependência química e física podem ser. Nos amamos loucamente. Descobrimos prazeres incríveis um com o outro, coisas que eu não conhecia, pequenas ousadias, pequenas picardias. Tudo de pouco em pouco nos puxando cada vez mais um para dentro do outro como toda paixão faz!

Ele morava no bairro logo ao lado de onde eu morava - para ajudar ( não! não é a primeira vez que falo dele por aqui, mas aquela caderneta me fez trazê-lo das profundezas da memória novamente ). Ele vinha me buscar com seu carro de madrugada para me deixar na USP para as aulas da manhã e ir para o trabalho. Nos encontrávamos no almoço e nos almoçávamos logo em seguida. Paixão de todos os dias. Ele me fazia esperar onde estivesse USP, trabalho, onde fosse! Liberava os trainees dele mais cedo e vinha correndo atravessando a cidade para me buscar e me deixar em casa e nos falarmos até faltar só duas ou três horas para nos vermos de novo na madrugada seguinte.

Um dia virei a esquina e lá estava o carro dele parado na porta de casa!

O puto se apresentou e conquistou minha mãe e minhas irmãs e já fazia pilhérias! Minha boca se abriu e meus olhos piscavam sem parar enquanto minha mãe dava pancadinhas nas minhas costas:

" Tá de namorado hein? "

Eu estava?

A tempestade se armava sobre a caderneta molenga de amor e embebida em tinta e eu nem percebia.

Tudo começou com uma ex dele que voltou de um intercâmbio sei lá aonde . . .  Austrália, Nova Zelândia . . .

Essa frase desbotou na caderneta mas nunca em minha mente:

" . . . pintou um clima, rolou um beijo . . . "

E tudo se foi com as águas do verão depois de um ano de paixão a baixo!

E foi tudo ficando difícil! Ele a colocou pra trabalhar como coach conosco me colocando em situação ridícula! Ah que sorte que ela era péssima!

Depois quis sair comigo novamente dizendo que tinha um relacionamento aberto com ela. Rejeitei com fúria. Mas eu era a bola da vez! Ele se tornou Manager e foi direto e babando pra cima da escala!

E nos colocou juntinhos todos as manhãs, tardes e noites em todas as unidades de coaching!

" . . . QUE CANALHA !!! " meus amigos de faculdade ralhavam e lutavam para me carregar da sala de aula para o almoço, do almoço - nesta parte correndo porque é evidente que o maldito carro dele estava no lugar de sempre esperando "a sobremesa", para o trabalho e assim por diante!

Mas por mais que meus amigos se esforçassem . . .

As tintas da caderneta já escorriam feito cachoeira. Meu coração partido vertia sangue sujo como tinta, sangue pútrido, contaminado pelas inúmeras mentiras, invenções, intervenções e traições dele.

Ele se transformou em outra pessoa da noite para o dia.

Dispensou a ex e quase namorada novamente.

Tentou comigo e não conseguiu nada.

Então decidiu-se por ficar com trainees.

E arrasou com todas elas! Curso por curso, turno por turno, unidade por unidade.

Como manager tinha acesso a tudo e as conquistava facilmente. Sempre o mesmo tipo. Pequeninas, frágeis e carentes que se escondem no fundo da sala.

Mas que riam e se mostravam quando era a minha aula.

Riam da minha cara. Riam do meu treinamento. Riam do meu esforço em fingir que nada estava acontecendo.

Meninas-crianças.

Faziam minha humilhação se espalhar por toda a empresa. Os colegas coaches me levavam a reboque para todas as baladas e cervejadas possíveis! Todo mundo ajudando e repudiando-o.

Todos os meus amigos de faculdade fizeram uma super campanha de boicote a ele de todas as formas!

Sozinho ele escolheu uma das trainees  para namoradinha e meu mundo caiu!

Era o início de 1999!

Era o fim do mundo para mim!

Rezei por ele. . .  PELO FIM DO MUNDO, CLARO!

Assistia ao filme Armagedom rindo e várias vezes e sempre que podia! Era tudo o que eu queria! Que o mundo se acabasse em chamas e virássemos pó para não ter que morrer de vergonha a cada vez que ía pra o trabalho, a cada turma que iniciava o coaching. A cada trainee que ria alto. Os outros trainees baixavam a cabeça e murmuravam baixinho para mim no corrdor.

" Foi mal coach  . . . "

E eu morria a cada dia um pouco mais.

Mas nunca é o suficiente certo?

A caderneta já se tornara um borrão só! Mas se jogar mais um pouquinho de água ela derrama mais um pouco de tinta não é ?  Quem sabe se disfaça . . .

Uma trainee aparece na sala de equipamentos de vídeo enquanto terminava de guardar os materiais usados na aula que acabara de encerrar:

" Coach a senhora se importa se eu conversar com a senhora um pouquinho? " - pediu toda jeitosinha.

E eu já jogando as coisas nas caixas suavizei a voz:

" Claro, querida pode falar! " sorriso de 23 centavos.

" É sobre o Coach Zué . . .  A senhora e ele se conhecem não é? " - parei de tacar as coisas nas caixas.

" Um pouco . . .  " - me voltei pra ela com um sorriso de 7 centavos: " Em que posso ajudá-la . . . ".

Se apresentou fulaninha. Tipinho típico das trainees que ele "tava pegando" mesmo com a namoradinha em uma das turmas.

A boca dela se mexia e minha vontade de começar a jogar os equipamentos nela aumentava na mesma velocidade:

" . . . eu ouvi que a senhora e ele tiveram um lancezinho, mas eu sei que não é verdade! A senhora é inteligente e respeitável demais para alguém tão carente e tão sozinho como o Coach Zué! Imagine? . . . " - riu-se desafinada.

Agora o meu riso era de faca.

" Então " ela prosseguia:  " Eu queria um conselho da senhora. Ele andou me falando umas coisas que não é qualquer um que diz sabe? Não é qualquer um que percebe . . . Eu não sei como! Mas é como se ele me conhecesse a muito tempo sabe? E eu já nem consigo assistir a aula dele mais! Preciso saber coach, ele falou alguma coisa pra senhora?".

Meus braços se cruzaram, meu sorriso agora era de 3 centavos.

Suspirei e voltei a guardar as coisas com cuidado para não deixar a fúria fazê-las voar.

"Ah eu sabia que a senhora sabia de alguma coisa!" ela começou a tremer e a falar alto sem perceber sua própria exaltação.

Terminei de guardar tudo, preparei-me para sair enquanto ela pedia incansavelmente para que eu lhe contasse o que eu sabia e já na porta, saindo para o corredor virei-me e derramei uma dose de tinta enorme da caderneta de urbes que já se partia de dentro para fora em um X enorme:

" Bem querida, ele é manager, usou suas credenciais para saber tudo sobre você querida! Agora quanto a você e ele? Hmmmmm vamos ver: ele namora uma garota da turma B da manhã, pega duas da turma C do noturno e me pega de fim de semana, agora da sua turma ele ainda não tá pegando ninguém o que é muito favorável para você. É tudo o que eu sei, boa sorte! " sorriso de 300 dólares e saindo!

Na aula seguinte ele invadiu meu training usando seus direitos de manager e assistiu a exposição inteira ao lado dela segurando sua mão.

Ao de tudo lancei um tema polêmico e inúmeros trainees me cercaram inviabilizando a aproximação o afoito casal.

Demorei o triplo do tempo para tudo.

Para atender a todos os alunos, para guardar todo o equipamento e para me preparar para sair. Quando cheguei na recepção do prédio todo mundo estava lá e a recepcionista já foi logo falando:

" O manager Josué quer falar com a coach"

" Eu já sei estou indo!" a interrompi e o falatório era alto: " Vocês não tem que ir para o trabalho ou para casa ou viver SUAS vidas? " - gritei antes de entrar na sala dos managers.

Alguns se levantaram mais logo voltaram quando eu entrei.

Malditas divisórias que não chegavam até o teto.

" Sua conduta foi inadequada, coach!" - ele foi logo dizendo em voz alta para a platéia!

" Nada demais em relação a sua, meu caro chefe! " - disse me sentando e colocando os dois pés na mesa dele e a mochila na outra cadeira: " A trainee me pediu clareza de informações e eu cumpri com o meu dever." ri 17 centavos.

" VOCÊ APAVOROU A MENINA E MANCHOU A MINHA REPUTAÇÃO!!! " ele perdeu o controle e se levantou.

" A SUA O QUÊ ?! " meu grito foi mais agudo, ainda sentada, sorriso de mil dólares.

" Tá bom, tá bom eu sei! Eu fui péssimo com vc!"

" PÉSSIMO?! " - coloquei as duas mãos cruzadas na nuca e escorreguei na cadeira relaxada : " Você foi e é execrável! Eu não sei quem você é entre aquele que foi a casa da minha mãe se apresentar como meu namorado sem me consultar e esse que come uma trainee por curso e turno? " - disse baixinho e quando ele veio pra cima de mim com o dedo em riste me levantei: " - Não sei quem você é e não quero saber! Vá confortar a coitadinha e se vira com a platéia aí fora! Eu me demito! "

" VOCÊ NÃO PODE FAZER ISSO! " - ele retomou a gritaria vindo atrás de mim enquanto eu jogava a mochila nas costas.

" EU JÁ FIZ! EU ME DEMITO! NÃO ACEITO SER COACH DE UM MANAGER DA SUA LAIA! VÁ CONSOLAR SUAS TRAINEEZINHAS QUEM SABE UMA DELAS SE TORNA A PEGADA DO TURNO DA TARDE E TE CONSEGUE UMA OUTRA COACH  TROUXA PRA CAIR NAS SUAS HISTORINHAS DE COITADINHO CARENTEZINHO QUE A NAMORADA ABANDONOU! " - gritei já batendo a porta.

A gritaria foi total no hall do prédio.

" MANDO MINHA CARTEIRA DE TRABALHO PELO CORREIO! ADIÓS A TODOS! " me despedi sem olhar para trás com um sorriso de cinco mil dólares.

Claro que ele me despediu!

E claro que eu usei a grana muito bem indo para um congresso do outro lado do país, onde conheci um homem espetacular com quem namorei por vários anos!

Mas guardo com carinho a caderneta esfacelada, que secou, endureceu e virou um souvenir sombrio, todo borrado e grudento.

Mas colei a etiqueta 1999 (6) nela! Sexta caderneta! Caneta nunca mais!

Tipinho que se faz de vítima nunca mais!

Mulheres devem procurar homens, namorados, ficantes e amigos como uma boa caderneta de campo para uso na Urges! Deve buscar pessoas de força, resistência, que dizem a que vem e devem se lançar a elas com a suavidade poderosa e eterna do lápis para que nada se perca nunca e tudo fica preservado para sempre!

Receita que deu certo!

E ainda dá!

Dá muito certo!

Precisei de muitas escolhas ruins coroadas com a pior de todas da minha vida para aprender isso!

Mas aprendi!

Logo . . .

Boas escolhas ruins para todos!


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